domingo, 22 de fevereiro de 2009

Galpão

texto de izabel xarru

Ir como quem não sabe. Era a condição. Suando frio, arrastei dois ou três embrulhos de uma aplicação de coisas em espaços cujo mapa era absolutamente pessoal. E a velha já fedia.
Ela:

-Há três dias me preparo para não enlouquecer se vocês tirassem uma ou duas coisas do lugar. A senha: parem aí mesmo. Não posso com isso. Sentem. Mas durem pouco em sua visita. Não tenho mais florzinha pra dizer. E nem apagar, quero que não questionem isso.

Ele: -Isso?

Ela: -Isso. As minhas intenções. Já pensei saber, como vocês pensam agora. E já fui como são; cada qual, sua vida, seu papel. Acontece que agora as coisas atravessam meu corpo-mente, que alma já não acontece.
Ele: Como é que alma não acontece?

Ela:-Ah, o bom de vocês é o quanto são previsíveis. Escuta: alma acontece quando existe um movimento em direção ao outro.

Ele: -Outro?

Ela: -Não o do livro. Outro mesmo, quem não é você, é outro.

Ele: -E quem não é você?

Ela: -Este é o problema. Se a caixa de ferros me atravessa, ela sou eu. Se os papéis, os brinquedos, a luz, então....até as pessoas sou eu, pela ...desencapei os fios. Agora devem ir. Sabem, fiquei cansada. E já me ajudaram com a nova pergunta. É um beco. É um trem. E desenho um fio vermelho em todo o percurso.

Coisa por coisa, o lugar era pilhas, pedacinhos. Desde bagos de feijão, sacos de ferragens e aviões de controle remoto até oliveiras plastificadas. Tudo às tripas, como uma brisa serena que ocupasse a mulher com as mãos. Antes que fôssemos embora, ela me olhou do fundo de não sei que mundo, e me disse então:

-Não é nada, não. A morte impossível é que dói agora.

Um cheiro de lixo ocupou todo o galpão. A dor dela me enojou. Escarrei ali mesmo, e saí antes que a velha me batesse, não sei como tive pernas tão astutas.

Chegando em casa, senti novamente o cheiro do lixo crescer por dentro do meu corpo. Abri a geladeira e descongelei toda a carne, para ver se eu vinha dali.

Sorri ao misturar sangue com perfume francês.




3 comentários:

  1. É um dos seus textos mais bonitos que li, até agora..

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  2. "A morte impossível é que dói agora".
    É a pior sensação (sentir uma família morta , mas com a carne viva).
    Seu texto tocou no sangue,Izabel.
    Beijo
    Nadir

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  3. Bonito e cantante como "misturar sangue com perfume francês".

    Melhores palavras não viriam de meus lábios...

    Prazer em rever!

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