sexta-feira, 27 de março de 2009

Exposição


izabel xarru



Recolhi o naufrágio como um tecido agarrado à pele: ele me sussurrou 'incêndio' através dos ossos da minha mão/
desde então, o que ouve, em mim, é mais interno e tem acuidade de olho/ o que fala já não sou, /
o que anda é imóvel como uma certeza. /




Adoto o esquecimento: a seda não tem memória, só estampa/
Imprimo a lua nos acontecimentos/
porque/
aqui/
a brisa me basta em nome da noite. /
Todos os vocês estão mortos/
Todos os eus os velam/
e Deus é uma pedra convidada a me afiar/
Dentes/
Percurso/
e Imagens.

terça-feira, 17 de março de 2009

Na fala

texto de Izabel Xarru


Nem que fosse a fórceps. Dali, do labirinto externo que sugava para o ouvido a mais nociva doçura ou estilhaço de vidro no esôfago, teria saído meu primeiro filho. Foi dali. E vingou. Seja lá o verbo como seu destino. Filho que rompeu o ocre do afeto e corrompeu artérias, recaptações, alcances, atuações, cismas e otras cositas más.

Ah, sim. Vinha com força de pedra formada no fogo. Naquela antiguidade estúpida como um monitor de mortes sem mensura, aquele retorno que reproduz e não interpreta. Ali estão as bradicardias com queda de saturação, o rosto-hematoma, e vão apitando, a cada impulso milimétrico do Corpo, os seus sensores. Reunidos em gangs, entre iguais, os iguais, entre os rostos em deformação, os piores sons, as imagens que atravessam as cartilagens e incrustam nos Ossos, a perda irreparável de sangue e oxigênio no cérebro.

O Corpo: este que nos une e separa, como uma vírgula, ou uma caverna sigilosa, ou uma vigília que esmaga.

Agora vou dormir. Sabe o que é isso?

Ele será Seu.
O nome dele é Música.
Ele tem diásporas nas extremidades e ouro laminado em cada senha.
Átrios: entre e venha, no mínimo, Pérola.
Venha de joelhos, caso se sinta mais confortável.
O melhor, eu sei:
O mundo não produz duas anêmonas de mesma cor
e as hóstias, fulano, as hóstias...
nunca valeram a dor da Confissão.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Grazzi Yatña
Estranho.
gostava de elegê-lo simples
enquanto não soletrava e era mesmo.
Afirmei, tomou susto e
me olhou como fenômeno.
Achei graça e ele é tão febrilmente doce
sorrindo pra mim como se eu fosse triste
que avisei que não.
Achou graça, colocou amor como se fosse
a gente e é.

sábado, 14 de março de 2009

A tecelagem de membranas.

paulo castro


Uma das pernas tinha que esperar a outra encostar no chão, para arremeter ao alto, sem risco de queda. Pelo vestido florido, as cartilagens inchadas. Ela caminhava como se a dor fosse do chão e não de si. O primeiro sinal. O primeiro estigma.
Dedos curvos numa incredulidade minha, como possível assim, pegar e eu pegava com a facilidade a xícara e o cigarro. Pegava minha dor e fazia festinha de amigos com ela, as meninas trazem a buceta e os meninos trazem os risos para corroborarem minha piada exata.
E ela ali não vendia nada. Bem que eu precisava de um corte de cabelo, um fazer de barba, e ela ali como se não pudesse ser mais corpo a gravidade da corcunda.
Me olhou pelo olho que sobrava sem encortinamento da pálpebra funda, incomodavelmente teatral ainda em mim, "como vai vc, Fulaninha, que tal nesse fds a gente não se...". Lan house fede Douritos e peido. Lan house é o substituto da piscina do clube: quentinha de tarde não pelo sol, mas da molecada que mijava e ainda mija, mas hoje o faz nas bocas escancaradas das dependências e enlaces sacaneadamente chamados de sociais. Tudo bem que ontem eu mesmo fazia as contas com os carpaccios antropomórficos que levo na carteira. São as dependências que mantêm as coisas em ordem entre os vivos. "Fulaninha, vc me dá a honra e eu te dou banho na Jacuzzi com teto móvel, ai que sol mais go-to-so !".
E teve ( tempo, espaço, o que agora quentes querem ?) que a velha estancou na porta. Sistema Hieronimus Bosch de náusea no moleque chicletento na entrada:
- O que a senhora deseja ?
Mal se ouvia a voz (sem lamento, segundo estigma), mas aquele olho restante, cinza cachoeira, olhava para mim e a sensação era que não tinha mais eu lá, eu onde, eu quando, porra de Kant querelante, não funciona nos trópicos mesmo com a sinergia bestificante do ar-condicionado avec goteiras.
Ê já chicletento sabor framboesa língua preta splish cool rave night empurrando aquele corpo para fora, corpo sem conexão, sem multi-mídia, sem anti-vírus, sem RPG.
- Ô seu merda. Deixa a velha vir falar comigo.
- O dono disse...
- Porra, seu merda - levantando.
A velha sorriu as gengivas e uma derramagem de invasão: o cheiro de terra, algo como se Pernambuco se transformasse em um câncer geográfico, fazendo desaparecer os aromas de bacon, gatorade e restos de almoço lazanha mãe corrida sadia, claro, bolonhesa. Entendo o desespero nostálgico do ar-condicionado. Tipo: a mão do operário.
Solta. Solta, mancando, sorrindo, parece que cai, parece que é mais forte, cálculos vindos dos ciclos sol-lua, ela chegou ao meu lado, impedindo que me sentasse novamente: aqueles ossos protusos e rebeldes tinham força na mão de minha mão.
- Velha, o carpaccio...
- Jesus ! Salvador dos Homens.
- Caralho.
- Lindas palavras !
- Quem sabe um pão de queijo....
- Tua alegria que multiplica !
Tentei arrancar minha mão daquela coisa que fazia arrepio de uma forma pianesca. Mas eu não queria. Ou uma coisa sem nome fazia a cola.
- Jesus....obrigada por já me ter feito morta. Tudo ficou para trás, estrada, filho e cachaça. Tudo dos vivos agora não mais me chora, estrada, filho tiro. Vejo e visito o mundo dos vivos, vivo morta entre eles, um preso, outro crack, tem aquela com a barriga. Mas nada mais me faz sofrer. O senhor, Jesus, me fez morrer. Nada mais dói. Meu peito agradece em oração. Os vivos podem me ver e eu vejo os vivos, mas por sua graça....
- Senhora....
- E de Nossa Senhora....eles não conseguem....atravessar aqui, atravessar para mim, atravessar aqui onde está o paraíso do que me cerca e do que é minha carne.
A molecada com os fones de ouvido, nem aí. O Chicletento no telefone, falando, me olhando com ódio.
- Eu realmente não sei o que posso fazer por você, dona, eu...
- Atravesse.
- O que ?
- Meu bom Jesus, atravesse e me abrace. Sou sua esposa e não do outro que no inferno queima.
Não houve pensamento.
Não houve compaixão, dó, poesia, pena, comunismo, não houve.
Só houve que a abracei com força.
A tirei do chão. Levantei aquele corpo e segurei em meus braços. Costa em um, perninhas atrofiadas em outro. A testa dela ao alcance de minha boca.
Beijei.
E mais um pouco abaixo. Beijei sua boca. Salivas misturadas e a tontura de vinho.
Ao devolvê-la ao chão, ela chorava e sorria. Ela estava dentro de mim. E eu dentro dela. Não havia o que separar.
- Meu bom Jesus...sigo meu passeio pelo paraíso que para mim criou....e o Senhor sabe bem, criou para si. Saiba bem. Criou para si.
- Eu sei. Eu sei mesmo.
E cambaleante como entrou, ela saiu, atravessando o vidro fumê, ganhando o verão da rua, ou a carícia de um êxtase temperado.
Cinco minutos de nada em mim, de nada em lugar algum.
Metafísico ?
Nem de longe.
Paguei os minutos e fui cortar o cabelo e a barba. De tarde, tomar um porre. De noite, ligar para o disque-puta. Ou Fulaninha, se tivesse com saco de ouvir sobre seu mestrado.
Afinal, já não mais importava.
Nunca importou.
A lã da matéria feita nas membranas dos fatos. Furada. Estigma.
º

terça-feira, 10 de março de 2009

Sem acrobacias

texto de izabel xarru



Foi no circo. Claro. Precisei de umas pipocas pra engolir. E aquelas bebidas de saquinho, cor de k-suco.
Ele ia passando Gardel, fino, vestido preto, mocassim. Ela de vermelho-mosca. Os dois: vertigem.
Acendi o cigarro pra protelar.

Pra ela:- Tem fogo?
Ela sem piteira no cérebro: -Não pode fumar aqui!
Eu-bala: -Mas pode atirar (risinho escroto, vontade de vomitar).

Sabe? O tango não me serve.


Ele: -Por favor. Você....

Eu: Bolero não. Ou em segundos falaremos em vingança e gardênias.

E ele solta a mulher acetinada pra me gravar:
-Por favor, eu tentei...


E eu nada. Agora preguiça.
O macaco sobe na bicicleta.

Bolero por dentro.

Segundo turno:
Sentados na mureta, mar chuá.
Eu: - Arrede essa lua pra lá.
Ele: - Então?

Eu: -Sei lá. Pra que você acha que serve um malabarista?
Ele: -Pára. Estou agoniado.
Eu: - Que bonito. Vou tirar uma foto. Pra te esquecer mais rápido.
Ele: - E o chorinho, as promessas, o prato principal?
Eu: - Alaska. Matei o garçon.

Ele: uísque pra dois?

Isso. Enquanto, devagarinho, sumo da tela.


segunda-feira, 9 de março de 2009

Grazzi Yatña
Regresso e ali vitrola.
"Nem mesmo eu?"
Um botão fixamente bordado.
Nunca a vira antes assim, com resignação de casa em tecido roto girando.
Levanto assassina boa enquanto me trais com tanta fé em mim que chorinho não.
Não lhe disse lápide.
Apenas escrevi: "Por enquanto, nem estrelas."
E morri.

domingo, 1 de março de 2009

Grazzi Yatña

- Ei mãe! Não entendo quase nada do que você escreve mas sua letra é bonita assim, inclinada.

- Então me dá seu autógrafo?