sábado, 14 de março de 2009

A tecelagem de membranas.

paulo castro


Uma das pernas tinha que esperar a outra encostar no chão, para arremeter ao alto, sem risco de queda. Pelo vestido florido, as cartilagens inchadas. Ela caminhava como se a dor fosse do chão e não de si. O primeiro sinal. O primeiro estigma.
Dedos curvos numa incredulidade minha, como possível assim, pegar e eu pegava com a facilidade a xícara e o cigarro. Pegava minha dor e fazia festinha de amigos com ela, as meninas trazem a buceta e os meninos trazem os risos para corroborarem minha piada exata.
E ela ali não vendia nada. Bem que eu precisava de um corte de cabelo, um fazer de barba, e ela ali como se não pudesse ser mais corpo a gravidade da corcunda.
Me olhou pelo olho que sobrava sem encortinamento da pálpebra funda, incomodavelmente teatral ainda em mim, "como vai vc, Fulaninha, que tal nesse fds a gente não se...". Lan house fede Douritos e peido. Lan house é o substituto da piscina do clube: quentinha de tarde não pelo sol, mas da molecada que mijava e ainda mija, mas hoje o faz nas bocas escancaradas das dependências e enlaces sacaneadamente chamados de sociais. Tudo bem que ontem eu mesmo fazia as contas com os carpaccios antropomórficos que levo na carteira. São as dependências que mantêm as coisas em ordem entre os vivos. "Fulaninha, vc me dá a honra e eu te dou banho na Jacuzzi com teto móvel, ai que sol mais go-to-so !".
E teve ( tempo, espaço, o que agora quentes querem ?) que a velha estancou na porta. Sistema Hieronimus Bosch de náusea no moleque chicletento na entrada:
- O que a senhora deseja ?
Mal se ouvia a voz (sem lamento, segundo estigma), mas aquele olho restante, cinza cachoeira, olhava para mim e a sensação era que não tinha mais eu lá, eu onde, eu quando, porra de Kant querelante, não funciona nos trópicos mesmo com a sinergia bestificante do ar-condicionado avec goteiras.
Ê já chicletento sabor framboesa língua preta splish cool rave night empurrando aquele corpo para fora, corpo sem conexão, sem multi-mídia, sem anti-vírus, sem RPG.
- Ô seu merda. Deixa a velha vir falar comigo.
- O dono disse...
- Porra, seu merda - levantando.
A velha sorriu as gengivas e uma derramagem de invasão: o cheiro de terra, algo como se Pernambuco se transformasse em um câncer geográfico, fazendo desaparecer os aromas de bacon, gatorade e restos de almoço lazanha mãe corrida sadia, claro, bolonhesa. Entendo o desespero nostálgico do ar-condicionado. Tipo: a mão do operário.
Solta. Solta, mancando, sorrindo, parece que cai, parece que é mais forte, cálculos vindos dos ciclos sol-lua, ela chegou ao meu lado, impedindo que me sentasse novamente: aqueles ossos protusos e rebeldes tinham força na mão de minha mão.
- Velha, o carpaccio...
- Jesus ! Salvador dos Homens.
- Caralho.
- Lindas palavras !
- Quem sabe um pão de queijo....
- Tua alegria que multiplica !
Tentei arrancar minha mão daquela coisa que fazia arrepio de uma forma pianesca. Mas eu não queria. Ou uma coisa sem nome fazia a cola.
- Jesus....obrigada por já me ter feito morta. Tudo ficou para trás, estrada, filho e cachaça. Tudo dos vivos agora não mais me chora, estrada, filho tiro. Vejo e visito o mundo dos vivos, vivo morta entre eles, um preso, outro crack, tem aquela com a barriga. Mas nada mais me faz sofrer. O senhor, Jesus, me fez morrer. Nada mais dói. Meu peito agradece em oração. Os vivos podem me ver e eu vejo os vivos, mas por sua graça....
- Senhora....
- E de Nossa Senhora....eles não conseguem....atravessar aqui, atravessar para mim, atravessar aqui onde está o paraíso do que me cerca e do que é minha carne.
A molecada com os fones de ouvido, nem aí. O Chicletento no telefone, falando, me olhando com ódio.
- Eu realmente não sei o que posso fazer por você, dona, eu...
- Atravesse.
- O que ?
- Meu bom Jesus, atravesse e me abrace. Sou sua esposa e não do outro que no inferno queima.
Não houve pensamento.
Não houve compaixão, dó, poesia, pena, comunismo, não houve.
Só houve que a abracei com força.
A tirei do chão. Levantei aquele corpo e segurei em meus braços. Costa em um, perninhas atrofiadas em outro. A testa dela ao alcance de minha boca.
Beijei.
E mais um pouco abaixo. Beijei sua boca. Salivas misturadas e a tontura de vinho.
Ao devolvê-la ao chão, ela chorava e sorria. Ela estava dentro de mim. E eu dentro dela. Não havia o que separar.
- Meu bom Jesus...sigo meu passeio pelo paraíso que para mim criou....e o Senhor sabe bem, criou para si. Saiba bem. Criou para si.
- Eu sei. Eu sei mesmo.
E cambaleante como entrou, ela saiu, atravessando o vidro fumê, ganhando o verão da rua, ou a carícia de um êxtase temperado.
Cinco minutos de nada em mim, de nada em lugar algum.
Metafísico ?
Nem de longe.
Paguei os minutos e fui cortar o cabelo e a barba. De tarde, tomar um porre. De noite, ligar para o disque-puta. Ou Fulaninha, se tivesse com saco de ouvir sobre seu mestrado.
Afinal, já não mais importava.
Nunca importou.
A lã da matéria feita nas membranas dos fatos. Furada. Estigma.
º

13 comentários:

  1. eitcha, filho do lubisômi, chegou com FORÇA, heim?

    Jesus!

    '- Jesus....obrigada por já me ter feito morta. '


    Bel.

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  2. Se todo capenga nascesse maneta seria uma comédia. Por isso deus inventou a prótese..

    Grazzi

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  3. chicletento sabor framboesa língua preta splish cool rave night na lan house fétida de doritos e peidos aliciando aleijadas... que lindo isso!!!

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  4. ...adonde hay alma, hay fe?
    puede ser.........pero lo que hay es puno de Poeta.


    regresa fuerte Paulo.
    necesitamos el impacto para despertar.

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  5. Olho azul cachoeira oceano olhava para ti e a sensação era que não mais te tinha lá. Estigma.

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  6. algumas fulaninhas nem fazem mestrado, oras.
    Mas isso "São as dependências que mantêm as coisas em ordem entre os vivos" é uma verdade inabalável.
    eu chamo da balança dos favores. Gosto sempre de ter o lado dos outros mais pesado comigo.
    Serve bem para chantagens, dramalhões e cobranças com juros.
    hehehehehee
    adorei.
    Beijo-te.

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  7. NOssa que delícia Paulo! =)
    Lendo e vendo um filme passar em minha mente...adoro isso!
    Muito, muito louco (como não poderia deixar de ser), porém muito lógico...espetacular, como só vc sabe ser!
    Escreva mais meu querido...adoro sempre!!!!
    bjos
    Paty VN

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  8. "A lã da matéria feita nas membranas dos fatos. Furada. Estigma"

    Filantropia?
    Insano + profano!
    Vamos rezar um pouco mais...
    ...melhor esperar por uma alma santa!
    Quem sabe um anjo tipo ninfeta...
    ...mas dizem que não tem sexo!
    Cuidado com as criaturas dark night!

    Dizer mais o que!!!
    C é fda!
    Abraço!
    º

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  9. Pancada, paulada, faísca, inquietude, além disso muita interação, muita. Coisa de quem sabe olhar o além do olho clínico. Putz, na real nem sei o que falar do texto. Puta texto, ducaralho.
    Braços do abraço.

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  10. Fosse um comentário espiritual, eu diria que "a lã da matéria não te enrola mais"
    Fosse pessoal, eu diria que hoje gostas mais de ti do que ontem.
    Fosse apenas um comentário prá constar, eu diria: Uma bizarrice a la filme theco.
    Mas sobretudo, muito bom!
    Não pare não.

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  11. este texto só dá pra ler correndo, o que é maravilhoso. ler mil vezes, se quiser, mas ele NÃO PERMITE o pausadamente. ele corre, corre, corre numa cavação que nem aí pra limite, ele zuna. braços fortes, ele 'não'. ele toda e nenhuma emoção no mesmo parto.ele tem vida, pulsa.
    e fala tanto que não dá pra tomar sem arriar a cada tranco, muito a muito.ou vai ou racha. tem uma verdade nele. não sei explicar.

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  12. Alcebíades Filho, de quem, mesmo?15 de março de 2009 às 13:03

    genial etc e tal.

    *

    eu, também, nasci morto. viva!


    ***


    te beijo.

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