sábado, 9 de janeiro de 2010

Ninguém

izabel xarru



D. Cecília era assim, uma rara. Virada de costas pro mau acaso, bunda e ombros já formavam loft, misto de idade e moda. Agora, na cozinha, fazia um suco sem sementes, sem películas, sem bagaço, quase sem fruta, mesmo. Puro capricho. Pro marido:

-João, que foi mesmo que eu pensei sobre o filme de ontem?
-Ô, Cecília, você está como seu pai, não lembra das coisas. E dormiu na parte principal.
-Ah... que pena. Pensei que eu tivesse gostado.

Dia vai, dia vem, D.Cecília atende um telefonema que não fala. De novo. De novo. Ai, ai, mas ela queria acabar de cuidar dos passarinhos. E de novo. Ela:

-Alô, você. Sabe, tenho um melro e uma catatua. Eles brilham no escuro. E quando penso em matar alguém, corro pra eles. Memória nunca me pega. De vez em quando adoto uma criança e brinco de estragar jornal. Depois nos jogamos fora.

A pessoa que ligou não falava. Ela:

-Continuando, até que sou sozinha de pai, mãe, filhos e espíritos santos, como o seu. Honra conhecê-lo. É amante de meu marido ou deseja assaltar minha casa? Pode me trazer uma televisão de algum assalto antigo, que a daqui pifou. Guardo pães na geladeira, se precisar.

A pessoa ouvia, talvez.

-Será que você viu o último filme do Almodóvar? Dizem que ele não é o mesmo. Também, claro, ninguém é o mesmo ( seria, talvez, os mesmos). Gostei da cena em que Penélope está comendo umas pipocas, distraída. Não tem as pipocas, mas é o que ela está fazendo, ali, calada como você.

De repente uma música começou a tocar no telefone mudo. A tal pessoa tinha colocado para Cecília ouvir. Isso, ela tinha certeza, até se enterneceu.

Só D. Cecília pensa nessas coisas assim. Por isso é que, de noite, depois do trabalho, ela reza para os bonequinhos alados de um oratório. Desde que seu primeiro filho morreu ao cair de um sonho. E ninguém quis entender porque ela gosta tão serenamente da palavra ‘amnésia’ e da palavra ‘combustão’.

9 comentários:

  1. Ia escrever algo sobre o texto, mas me tive uma repentina amnésia, rs.
    Iza, valeu por compartilhar o texto.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Teve vez de Dona Cecilia desligar o macaco na cara do telefone e nem assim ele entender. Sei disso porque me escreveram uma carta que pegou fofo nos dentes e virou fumaça. E fumaça a gente sabe como é..faz cor de não apagar e é assim que nascem as penas dos pavões ninguens.

    Beijo e maios.

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  4. Belmetalinguagem,
    vc me remete à mocinha de Minas, A.P com esse cotidiano de marido, santos, afazeres domésticos- e as palavras que vc brinca de vc mesma: 'amnésia' e 'combustão'. O telefone não responde, o fio do barbante se cortou e vc insiste neste cordão umbilical, das outras que te habitam.

    tocante, moça!

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  5. esquecer assim faz a lembrança ser coisa nova. cai-se de um sonho para outro.

    quanta beleza..
    ..beijo

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  6. Muito bom!
    A vida de dona Cecília daria um livro...de novidades repetidas!:)
    Força na viga, Isabel que o blog tá muito bom!
    Bjs

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  7. Ah, Dona Cecília...
    no interior do Brasil de onde venho, brotaram muitas - tantas! - cecílias assim.
    daí que "viajei"no texto, que foi costurado com habilidade e sentimento...
    gostei. e voltarei a este blog, que está uma beleza.

    abraço de admiração do
    roberto lima.

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  8. Como senti doçura em Dona Cecília!

    Lembrar de ter amnésia pra esquecer a dor...

    ...só mesmo um coração cheio de esperança!

    E de vida!

    Amei!

    Beijo, Nilza

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